Jornal CEIRI entrevista presidente do CCBT sobre a situação política na Turquia
  31.12.2016
Jornal CEIRI entrevista presidente do CCBT sobre a situação política na Turquia

Marli Barros Dias - Colaboradora Voluntária Sênior

“As práticas nos últimos três anos dão uma ideia do nível do retrocesso dos valores da democracia e dos direitos fundamentais que a Turquia sofreu. Erdoğan é o único poder em vigor no país, todos os outros poderes estão subordinados a ele, inclusive o Judiciário” (Mustafa Göktepe)

Mustafa Göktepe, cidadão turco-brasileiro, é o fundador e presidente do Centro Cultural Brasil-Turquia. Empresário nas áreas do turismo e da alimentação, foi professor de Língua e Cultura Turca na Universidade de São Paulo (2010-2013), de Língua e Cultura Turca e Civilização Turco-Islâmica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2009-2013) e de Língua e Cultura Turca na Universidade de Brasília (2013 a 2014).

Entre 2011 e 2014, Mustafa Göktepe serviu como assessor do representante do jornal Zaman, da Turquia, no Brasil. Ele é tradutor juramentado – turco e português –, sendo tradutor simultâneo do turco e português e, ainda, tradutor e revisor de livros.

Pergunta: Como o senhor define a política atual da Turquia?

Resposta: Como uma política no caminho da formação de uma ditadura. As práticas nos últimos três anos dão uma ideia do nível do retrocesso dos valores da democracia e dos direitos fundamentais que a Turquia sofreu. Erdoğan é o único poder em vigor no país, todos os outros poderes estão subordinados a ele, inclusive o Judiciário.

Pergunta: Qual foi o objetivo da tentativa de Golpe na Turquia? Quem, de fato, esteve por detrás?

Resposta: A Turquia sofreu quatro golpes militares na sua história, em 1960, 1971, 1980 e 1997, além de várias outras tentativas. Por isso, sabemos muito bem como acontecem os golpes. O que foi em 15 de julho de 2016 não era um golpe comum, embora no início parecesse assim. Um golpe militar não acontece em apenas duas cidades, envolvendo apenas 2% dos militares, sem prender nenhum político, sem tomar o controle da mídia e jamais acontece na sexta-feira, às 22h00, num dia de Verão, quando todo mundo está acordado. Juntando todas essas estranhezas com o expurgo que vem acontecendo desde então, eu chamaria de “teatro do golpe” ou até “autogolpe”. Essa tentativa de golpe beneficiou apenas Erdoğan no seu caminho ao sistema presidencialista.

Não se sabe exatamente quem fez o golpe, talvez seja um grupo de militares incomodados com as práticas do Erdoğan que desviou a Turquia do caminho da democracia. Mas de uma coisa tenho certeza: Erdoğan sabia dessa tentativa e deixou acontecer, sentindo-se tranquilo por ter o controle absoluto da Inteligência, da Polícia e da Justiça. Sabia que o golpe não iria dar certo, mas que ele iria se beneficiar dessa tentativa para acabar com todos os críticos ao seu autoritarismo.

Isso foi confessado por ele mesmo, numa entrevista ao vivo que deu à CNN Turk durante os momentos do golpe. Parece piada, o presidente de um país que está sofrendo um golpe militar dando entrevista ao vivo com a localização anunciada. Mas não era piada, era parte do teatro. Naquela primeira entrevista Erdoğan já nomeou o Movimento Hizmet e seu inspirador Fethullah Gülen como sendo os autores do golpe e disse que “essa tentativa de golpe foi uma benção de Deus, pois agora poderemos fazer uma limpeza generalizada, começando com as Forças Armadas”.

Ele está fazendo o que disse: limpeza geral em todas as instituições públicas e privadas. Algumas horas depois do início da tentativa de golpe, começaram a divulgar listas com os nomes de milhares de pessoas como golpistas, todos previamente fichados. Trabalho tão malfeito que divulgaram nomes de pessoas que já haviam morrido ou mudado de cidade ou até de país. Em seguida foi decretado o “estado de emergência” e os “direitos humanos” foram suspensos, assim qualquer ação anticonstitucional se tornou possível com o decreto presidencial, ou seja, de Erdoğan.

Começaram a prender pessoas, sem prova, sem inquérito, sem processo judicial… simplesmente por ser crítico ao autoritarismo do Erdoğan. O número de pessoas presas e detidas já supera o cento e vinte mil e o número de instituições fechadas e tomadas passa de três mil e quinhentas.

Pergunta: Por que o Governo quer criminalizar o Movimento Gülen (Hizmet)?

Resposta: O Movimento Hizmet, inspirado no erudito Fethullah Gülen, é um movimento da sociedade civil que surgiu na Turquia que hoje está presente em mais de 170 países, com trabalhos educacionais, culturais, empresariais e sociais. É um movimento apolítico, a favor da democracia e dos direitos fundamentais. Por isso, os membros do Hizmet votaram em diferentes partidos e candidatos, levando em consideração a promessa deles.

O partido de Erdoğan também atraiu os votos dos simpatizantes do Hizmet nos primeiros dois mandatos, por causa das promessas (e inclusive práticas no início) em favor de melhorar a democracia e as liberdades na Turquia, da adesão à União Europeia e da mudança da Constituição atual, que é militar, cheia de restrições, por uma civil e mais democrática.

Tanto o Hizmet, quanto outros a favor da democracia, começaram a criticar Erdoğan a partir de 2011, quando ele condicionou a mudança da Constituição à mudança do sistema no país, do parlamentarismo para o presidencialismo, e começou a ter um discurso autoritário, demonstrando as ambições da liderança regional e religiosa, inclusive cogitando a volta do Califado.

Mas o principal marco entre o Erdoğan anterior e o de hoje foram as operações de corrupção ocorridas em 17 e 25 de dezembro de 2013, que envolviam o gabinete de Erdoğan, então Primeiro-Ministro, chegando até ao seu filho, Bilal Erdoğan. Tudo indicava que ele, com a sua família e alguns ministros de seu Governo, faziam parte de um esquema de corrupção que durava há anos, que desviava 10% a 20% de todas as licitações. As gravações de áudio e vídeo das investigações foram divulgadas no YouTube e no Twitter, o que motivou o fechamento dessas redes sociais.

Alguns “colunistas” e “religiosos” tentaram justificar esse roubo de 20% com pareceres religiosos, dizendo que o Califa teria direito a um quinto (1/5) de todo ganho para atender as necessidades de toda comunidade muçulmana mundial. Um deles (Ahmet Akgündüz) chegou a dizer que os Governos anteriores roubavam 80%, esses roubam apenas 20%.

As pessoas e as instituições inspiradas no Movimento Hizmet, como o jornal Zaman e Samanyolu TV, não fizeram vista-grossa a essas operações, como desejava Erdoğan.

Ainda naqueles dias da operação, Erdoğan começou a sua caça às bruxas contra o Hizmet chamando-o de Estado paralelo. Ele tentou tudo para criminalizar o Hizmet, chamando-o de grupo terrorista. Mas não tinha como fazer isso porque não tinha nenhuma prova e por o Hizmet ser conhecido como um movimento pacífico. Ele precisava de algo para poder chamar de terrorista, para fazer uma perseguição generalizada, o que vem fazendo desde essa tentativa de golpe.

Pergunta: Como o Governo turco tem conseguido apoio da população?

Resposta: De várias formas. Listando apenas as principais:

1)    As políticas sociais, que não procuram dar um empurrãozinho para as pessoas começarem a ter um emprego, um ganho digno, mas que tornam as pessoas dependentes dos programas sociais do Governo. As pessoas não querem correr o risco de perder os benefícios, por isso votam no Governo atual, sem se importarem do que Erdoğan faz de errado.

2)    Medo generalizado. Isto faz com que as pessoas não se arrisquem denunciando os erros, ou criticando as ações ilegais do Governo e das autoridades. Há um círculo de espiões voluntários na sociedade, em geral, que qualquer um que aparenta ser um crítico ao Governo é perseguido, o seu negócio é fechado ou tomado, excluído de serviços públicos (educacionais, saúde, transporte, segurança etc.). As pessoas são destituídas, demitidas, presas por serem críticas. Não só de funções públicas, mas também das entidades privadas.

3)    Discurso islamista, que usa o sentimento religioso das pessoas. Erdoğan e os membros de seu Governo são mestres nisso. São dezenas as vezes em que Erdoğan participou dos comícios com o Alcorão na mão, balançando-o na frente das pessoas, recitando versículos, fazendo orações diante do público, para criar uma imagem de um líder religioso. Os muçulmanos praticantes na Turquia sofreram muito com os golpes militares que restringiam a prática da religião. Por exemplo, as mulheres eram proibidas de usufruir de serviços públicos se usassem o lenço/véu. Muitas deixaram de estudar no Ensino Superior, por terem que tirar o lenço para estudar. Algumas práticas boas de Erdoğan (sim, ele teve muitas práticas boas nos primeiros dois mandatos de seu Governo, por isso fui uma das pessoas que votou nele) aliviaram não só os muçulmanos, mas também outros religiosos de outras religiões. Ele continua usando a religião para alcançar seus interesses políticos. O discurso religioso não significa que ele seja religioso. Eu até diria que 90% de tudo o que ele vem fazendo não é justificável no Islã.

4)    Uso de mídia e política polarizadora. Hoje 99% dos órgãos de mídias (seja jornal, seja televisão e rádio) são pró-Governo. Para entender o efeito disso, basta imaginar que os jornais, as emissoras de televisão e de rádio de todos os grandes grupos no Brasil (Globo, Bandeirantes, Record etc.) pertencessem ao Governo ou aos seus simpatizantes e fizessem notícias 100% a favor do Governo.

Pergunta: Quais são os riscos de a Turquia se tornar uma ditadura?

Resposta: Não considero mais um risco, eu diria que a formação de uma ditadura está em curso na Turquia.

Pergunta: Qual o interesse da Turquia na Guerra na Síria?

Resposta: Eu fui tradutor de Erdoğan quando ele esteve no Brasil, em 2010, e fui tradutor de Dilma quando ela viajou para a Turquia, em 2011. Testemunhei as conversas nesse nível. Naqueles anos, no início dos conflitos na Síria, a Turquia parecia ser um articulador com al-Assad, orientando para que ele mesmo liderasse a mudança desejada pelo povo no seu país. Mas, depois ficou claro que Erdoğan apoiava os rebeldes desde o início, com a intenção de fazer al-Assad cair o mais rápido possível. Assim, a Turquia se tornaria o único país com estabilidade política e social na região, além de chegar até Damasco e rezar na imponente e importante mesquita dos Omíadas. Isso tem um significado religioso e dá sinais sobre o novo Califa dos muçulmanos.

Esse apoio ilegal, com armas e financiamento, foi divulgado por jornais turcos, alemães, britânicos e americanos. O jornalista turco (Can Dündar), que divulgou as fotos das armas nos caminhões da Inteligência turca a caminho da Síria, foi preso e a operação foi encoberta imediatamente. Uma parte dos rebeldes hoje faz parte do ISIS, conhecido também como Estado Islâmico (EI), ou DAESH.

A Turquia usou como crédito a sua localização e o fato de ser um importante membro da OTAN para não receber críticas duras da União Europeia e dos EUA. A Europa toda está com medo de mais de três milhões de refugiados sírios invadirem seus países. Por isso mantém uma política hipócrita, criticando Erdoğan um dia aqui, outro dia ali, mas não fazendo nenhuma sanção significativa. Os EUA não querem perder o espaço da OTAN em Incirlik, uma localização muito estratégica para ter controle na região. 

Pergunta: Quais as possibilidades de solucionar o problema entre o atual Governo da Turquia e a minoria curda?

Resposta: Os curdos na Turquia, bem como outras minorias (armênios, gregos, árabes, alauitas, xiitas, judeus, ortodoxos, católicos etc.) não tiveram muitos de seus direitos garantidos durante toda a República até que fossem feitas reformas pelo Governo de Erdoğan nos primeiros dois mandatos, como parte das exigências da União Europeia. Por exemplo, eles não podiam ter escolas, televisões, rádios, jornais em curdo.

O grupo terrorista PKK foi considerado como representante dos curdos por muitos Governos, embora isso esteja muito longe da realidade. Por isso deixaram a região sudeste do país, onde está a maior concentração de curdos, sem investimento e sem serviços públicos, como escolas, hospitais, fábricas etc.

Quando começou o “processo de paz”, os curdos começaram a ter voz no Parlamento com mais de oitenta deputados, pela primeira vez na história da República. Até 2014, a relação do Governo com os curdos em geral parecia estar muito bem. Quando Erdoğan anunciou que queria mudar o sistema no país (de parlamentarista para presidencialista a la turca) e ele queria se tornar Presidente, o líder do partido curdo (Selahattin Demirtaş) disse abertamente que jamais iria deixar isso acontecer.

Sem o apoio de 2/3 do Parlamento é impossível mudar o sistema do país. E sem o apoio dos parlamentares curdos é impossível chegar a este número. Aí começou a briga de Erdoğan contra os curdos. Tirou a imunidade dos parlamentares e está prendendo eles, junto com centenas de prefeitos curdos.

Pergunta: A Turquia corre o risco de uma Guerra Civil? Por quê?

Resposta: Sim, o risco de uma guerra civil é real. Acho que o que disse acima como resposta as perguntas anteriores, dá uma ideia sobre esse risco.

Tudo indica que, pelas razões apontadas acima, as coisas não vão mudar rápido na Turquia e na região. Ainda mais depois da eleição de Trump como Presidente dos EUA, a intenção da aproximação dele com Putin, da Rússia, torna muito difícil comentar sobre o futuro da região.

Fonte: http://www.jornal.ceiri.com.br/